quinta-feira, novembro 18, 2004

Personalidade do Mês de Novembro



Aqueles que nunca ninguém viu

Nasceu em 1919 no pós I Grande Guerra no ano em que é criada a Sociedade das Nações e assinado o Tratado de Versalhes, filha de uma família pobre, teve 6 irmãos que o surto de gripe pneumónica que afectou todo o país tratou de dizimar (estimam-se em mais de 100 mil o número de vítimas mortais entre 1918 e 1919), teve ainda outra irmã anos mais tarde.

O seu pai, severo e disciplinado, como mandava a tradição da época, estabelecia a ligação de mercadorias entre as duas margem do Tejo, juntamente com o seu irmão, que mais tarde num desentendimento, acabaria por assassinar acidentalmente.
A sua mãe conheceu as dificuldades da época e a escassez de recursos, natural da Murtosa, vendia peixe porta a porta à boa maneira do bairro da Madragoa, onde habitava.


Aos 11 anos viu-se forçada a acompanhar a sua mãe na venda do peixe pelas ruas do Bairro Alto, eram tempos difíceis e de grande instabilidade, Portugal mergulhado numa crise social e política que até 1926, fez com que doze dos vinte e seis ministérios fossem presididos por militares.


O naufrágio da embarcação do seu pai e a morte do seu respectivo ajudante leva a que este abandone a actividade com grande desgosto e amargura, facto esse que o mergulhou numa profunda depressão que o acompanhou até às horas da morte. Este episódio agrava ainda mais a sua situação financeira e os encargos familiares são cada vez menos suportáveis.

Aos 21 anos casa com um natural de Ovar, que filho de uma família de cinco irmãos, viu-se forçado a partir de Ovar aos 6 anos à boleia, para em Lisboa procurar a sua sorte, inexperiente e analfabeto, é com dificuldade que arranja trabalho, chega mesmo a ser militar e a mostrar intenções de integrar o corpo de milícias portuguesas, os Viriatos, para intervir ao lado dos Nacionalistas na guerra civil espanhola. Acabou por se empregar nos Caminhos de Ferro onde permaneceu até à reforma, teve vários problemas com a PIDE, tendo mesmo numa ocasião, estado envolvido em confronto directo com dois agentes.
Casa em 1940, ano em que estala a II Grande Guerra. Em 1942 têm a primeira filha, ano em que é construído o primeiro computador electrónico.


Em 1944, ano em que a 6 de Junho as tropas aliadas desembarcam na Normandia e dão início à libertação francesa, nasce a segunda filha.
As condições de vida são difíceis, vivem junto com a família da sua irmã, na mesma casa da Madragoa, onde sempre habitaram, casa essa sem casa de banho e com duas pequenas assoalhadas, é partilhada por 10 pessoas.

No ano em que fazem 10 anos de casados, inicia-se a Guerra da Coreia e os EUA fazem explodir a sua 1ª bomba de Hidrogénio no Pacífico.
Em 1965 é assassinado Malcom X, dirigente negro muçulmano, e em 1968 é também assassinado Martin Luther King, dirigente negro americano da luta pelos direitos civis.


Em 1969, já com 50 anos assiste (embora nunca acreditando no facto) à chegada de Neil Armstrong e Edwin Aldrin à lua. No ano seguinte é inaugurada a EXPO 70, em Ósaca no Japão, e noutra parte do mundo, um tremor de terra no Peru, tira a vida 70 000 pessoas.

Já em 1974, vivendo as dificuldades da época, num país "orgulhosamente só", vendia peixe na Praça da Ribeira,(adquirido na Doca Pesca de Lisboa), e assistiu a 25 de Abril de 1974 a uma insurreição militar que acabaria com o regime ditatorial e estabeleceria as bases da actual democracia portuguesa. Todavia a revolução de Abril passou-lhe ao lado e pouco a conheceu ou se identificou com ela.

Em 1978, nasce o seu terceiro neto, ano em que a marca americana Chrysler anuncia a venda das sua fábricas europeias à Peugeot- Citroen francesa e o Papa João Paulo I morre, depois de apenas 33 dias como papa. No ano seguinte nasce o seu 4 neto, no ano em que Margaret Thatcher se torna a 1ª mulher com o cargo de primeiro-ministro na Grã-Bretanha.

Já em 1983, nasce o seu último neto, no ano em que o Presidente Reagan lança a Iniciativa de Defesa Estratégica, que ficou apelidada como a Guerra das Estrelas, e no mesmo ano em que a 22 de Setembro, um comboio de passageiro bate o recorde de velocidade em França, fazendo a viagem entre Paris e Lião, em duas horas, a uma velocidade média de 212 km/h.

Em 1995 morre o seu marido, companheiro de longa data, o que a deixa abatida, nesse mesmo ano morre a sua filha mais velha e o genro da filha mais nova.

Em 11 de Setembro de 2001, assiste ao desvio de um avião civil, por terroristas, que viria a embater num dos maiores símbolos dos USA, e maior símbolo de New York, o World Trade Center, fazendo no momento centenas de vítimas. Volvidos alguns minutos um outro avião civil embate na outra torre do WTC fazendo prever a catástrofe que iria suceder: o desmoronamento das duas torres, e a morte de mais de 5.000 pessoas.

Em 2003 já com 84 anos e acamada em evidente debilidade física, mantendo sempre presente todas as suas vivências e satisfação em partilha-las, acaba por falecer.
Perdeu-se assim uma vida que atravessou vários períodos da história nacional e internacional, um poço de experiências vividas na 1ª pessoa e que fornecem um legado essencial às gerações vindouras. Poderia ser esta a biografia de uma personalidade qualquer que de alguma forma tivesse inscrito o seu nome na galeria imortal da história, mas é todavia a história de um cidadão comum, de mais uma pessoa a quem o anonimato prestou homenagem, mas lembrando sempre que a história não é só feita por personalidades distintas mas por muitas outras pessoas que embora importantes, não vêem o seu papel reconhecido, (terá Vasco da Gama descoberto sozinho o caminho marítimo para a Índia?) são para todas essas pessoas que deixo a minha mais profunda homenagem.

Nelson Ventura

Posted by Hello

5 Comments:

At 5:54 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Cada país tem uma bandeira, um simbolo e há tantas pessoas que o constituem.. as grandes conquistas, guerras, feitos, dizemos que foram obtidos por pessoas.. e "falamos" como se o conseguissem no singular.. mas os herois, suportam as "personalidades", não têm rosto, não têm nome, sao eles que morreram por causas, sao eles que suportaram a dor, tiveram vitorias na derrota e derrotas na vitoria... sao os Zés, os Antónios, as Marias que suportaram tudo, que fizeram a história e esses são os nossos Heróis! Cada casa, cada familia tenho a certeza que tem um herói, um exemplo de força, luta, resistência ... o "grande" herói não precisa de ser reconhecido por "mundos", basta que deixe a sua marca a um futuro herói, não precisa de ser reconhecido!.. basta não ser esquecido!

Scorpio

 
At 1:55 da tarde, Blogger João said...

A História a todos nós pertence, mesmo que apenas os ditos "heróis" constem dos livros dessa tão nobre ciência. Um Mundo cheio de "heróis", não seria um Mundo habitável, todos os acontecimentos têm por trás de si uma impressionante presença de pessoas como a que descreveste, que podem sentir-se alheadas do que se passa à sua volta mas que constituem o próprio ambiente no qual a História se desenrola.
Quantas são, nunca saberemos, mas a sua própria existência já é um motivo de homenagem, como a que aqui fizeste.

 
At 9:47 da tarde, Anonymous Anónimo said...

O que existe e torna as nossas acções conhecidas e reconhecidas é variado, o que as deixa permanecer anónimas, apesar do seu valor, é ainda mais vasto. Por isso, nem todos assumimos a imortalidade na memória colectiva, mas a nossa importância enquanto seres sociais faz com que sejamos capazes de permanecer na memória individual das pessoas, aquelas com quem sentimos a mesma paixão e que conjuntamente tivémos a capacidade de sentir. Na memória dessas pessoas seremos sempre recordados, seremos sempre uma lição, uma experiência que ensinámos a ser tomada como precedente, um sorriso que se recorda com saudade,... um qualquer pedaço de vida que permanece para além da nossa existência, ainda que que com uma duração limitada.
Tal como está aqui postulada a memória da personalidade que escolheste para personalidade do mês (que apesar de anónima para nós, acho que devias ter dito quem era ela na tua vida, embora reconheça que está bem subentendido),a memória que deixamos, no domínio de colectivo mais ou menos vasto, é um legado que justifica a nossa existência.

 
At 10:09 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Os meus parabéns o blog está magnífico, continuem o bom trabalho.

PF

 
At 12:12 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Os que ficam no anonimato não passam de números.
Morrem 100 mil pessoas aqui e outras 100 mil alí, e parece que ninguém percebe que cada uma delas não é só um número mas uma família, uma vida, uma pessoas com sonhos, e para a história o que fica?
a triste recordação da soma dos corpos.
IPSU FACTO

 

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